a todos os/as entusiastas, praticantes e interessados/as em permacultura no Brasil

“Pratique auto regulação e aceite feedback”

Em abril de 2016 publiquei um artigo/manifesto no site Outras Palavras, escrito à partir de uma entrevista com o amigo Thomas Enlazador que falava sobre a importância da popularização da permacultura no Brasil, relacionando-a ao conceito de ecossocialismo, defendendo-a como uma ferramenta de transformação sistêmica e estrutural que não deveria ser cooptada nem transformada em simples “jardinagem gourmet”, sob o risco de tornar-se inócua.

A repercussão foi assombrosa. Hoje, concluímos ter sido o texto/artigo sobre o assunto mais visualizado do país até o presente momento. Foram dezenas de milhares de acessos. Milhares de interações, mensagens e compartilhamentos. Como se, naquele instante, uma comporta tivesse se abrido. Mas claro que nem tudo são flores. Surgiram também daí ataques, ofensas, inimizades e desconfianças que, mesmo sendo minoria, incomodaram. Especialmente por parte de alguns praticantes mais antigos e pioneiros, incomodados com um subversivo do movimento (Thomas) e um completo desconhecido (eu) que ousavam pautar e denunciar certas contradições do “movimento” sem o mérito para fazê-lo.

À época decidi escrever essa carta aberta à comunidade permacultural brasileira, com o objetivo de dar uma resposta única e pública ao principal conjunto de críticas que vínhamos recebendo, mas depois de muito refletir, achei que não valia a pena; que não era o momento e que a animosidade que já havia surgido só iria se intensificar; além disso eu estava viajando pelo Brasil de carona, terminando meu mapeamento dos grupos de permacultura e prestes a terminar o mestrado e publicar um livro – havia outras coisas com as quais me preocupar. Não vendo utilidade nem oportunidade, desisti.

Passados 4 anos, relendo este texto em um puro acaso dominical de quarentena (que nos leva a fuçar em documentos e coisas antigas em busca de nós mesmos e de nossa trajetória), me pareceu que seria finalmente oportuno publicá-lo (com essa contextualização inicial, é claro), pois em essência, apesar de certa juvenilidade pedante que hoje reconheço no texto, as críticas e debates trazidos no primeiro artigo (meu e de Thomas), e também nesta carta, permanecem atuais.

Certamente muita coisa mudou para melhor, e o debate que se encontrava de certa maneira represado, se ampliou. Muitas iniciativas, pessoas e grupos desde então (e muito antes), dedicaram-se e dedicam-se à popularização da permacultura, e a enxergam como uma ferramenta revolucionária de transformação sistêmica, coletiva e, também, individual.

Obviamente, do ponto de vista da divulgação, o timming para a publicação desta carta já passou, e muito provavelmente, ela terá muito menos repercussão do que teria se publicada à época. No entanto, pela atualidade das coisas que retrata e pelo seu caráter histórico, sinto que ela ainda possui um pequeno papel a desempenhar neste processo coletivo e caótico conhecido por evolução.

Abaixo, na íntegra e sem alterações, a carta não publicada como a escrevi em 2016. Aos que se interessarem, sugiro também a leitura o artigo mencionado no início do texto. E aos que quiserem seguir com o debate, estou completamente à disposição.

Obs: só adiantando algo que sempre fez confusão com relação a matéria no Outras Palavras – o título foi escolhido pelo editor do site, e faz referência a uma linha de pensamento trotskysta latino-americana cunhada por Nahuel Moreno, chamada de morenismo. Ele optou por esse jogo de palavras para tentar abarcar as noções de uma permacultura socialista e negra. Não seria minha opção e não era o título original, pois eu já imaginava que surgiriam críticas à partir daí. Mas deixo o comentário só para constar.

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Com grande entusiasmo observei, nos últimos dias, a enorme repercussão da publicação de uma matéria de minha autoria onde entrevisto o companheiro Thomas Enlazador, com quase 7 mil compartilhamentos até o presente momento. Nesta matéria, Thomas e eu apontamos algumas necessidades e reflexões que nos parecem relevantes para que a permacultura (e outras concepções ecológicas de mundo) avancem socialmente e se difundam de fato, deixando de ser privilégio de poucos iniciados.

Recebemos inúmeras mensagens positivas de apoio e reconhecimento, como se houvéssemos conseguido traduzir um sentimento generalizado mas ainda não verbalizado – isso é muito valioso para nós, e nos enche de esperança e energia para seguir discutindo e praticando a popularização da permacultura no Brasil e no mundo. Mas nem todas as opiniões são (nem devem ser) convergentes: recebemos também algumas mensagens com críticas, vindas de pessoas que, de alguma forma, sentiram-se ofendidas com o tom da matéria e que nos acusavam de negligenciar partes da história da permacultura no Brasil. É relevante dizer que 1% das mensagens recebidas tiveram esse tom.

Primeiramente, venho reforçar algo importante: a enorme gratidão e reconhecimento ao trabalho dos primeiros Institutos de Permacultura do Brasil a partir dos anos 90, que aceitaram a missão pioneira de falar e difundir um assunto completamente desconhecido até então – e a realizaram corajosamente. Não cabe citar nomes para não ser injusto, mas certamente me dei ao trabalho de pesquisar e conhecer a trajetória dessas iniciativas e dessas pessoas, ao menos até onde os dados disponíveis me permitiram. Digo isso, porque algumas das mensagens sugeriam que eu ~não conhecia a história da permacultura no Brasil~; e que eu ~deveria estudar~.

No entanto, é importante reconhecermos as limitações e entraves de determinados processos, realizando a crítica e autocrítica com o intuito de avançar sempre. Dois simples exercícios nos apontam o óbvio: de um lado, convido qualquer um a perguntar sobre permacultura nas periferias urbanas; nos interiores; nos círculos de movimentos sociais populares e ver quantas são as pessoas que sequer já ouviram falar do termo; de outro, convido a observar o perfil geral dxs participantes de cursos de permacultura e PDCs e tirar suas próprias conclusões baseadas no que ali for visto e à partir de um recorte de gênero, raça, classe e indicadores socioeconômicos. Como sociólogo, e partindo da premissa de que ‘a prática é o critério da verdade’, são essas observações concretas que me movem mais do que discursos e ofensas.

A tendência pacifista rasa que alguns movimentos ecológicos contemporâneos trazem hegemonicamente, acaba, vez ou outra, por negligenciar o importante papel do conflito e da disputa, termos carregados de uma carga semântica bastante negativa neste meio e evitados a qualquer custo – ainda que sejam processos muito importantes para o crescimento e a superação de contradições, que devem ser encarados e vividos com amor e respeito. Por isso, ao invés de dizer que a permacultura é um conceito em disputa, prefiro dizer que ela – devido à sua história relativamente recente – é um conceito em construção. Muitos são os bioconstrutores desta grande obra em andamento. As técnicas e os objetivos sonhados para o edifício divergem um pouco, mas o objetivo desta construção deveria ser majoritariamente comum. Entrevistas como a publicada por nós pedem licença para, durante o trabalho, fazer uma fala de compartilhamento de perspectivas, baseada em sensibilidades e experiências particulares, mas que trazem elementos propositivos gerais.

Não vejo a permacultura como uma categoria, um clube ou uma corporação. Nem como uma fraternidade de benefício mútuo. Não se trata de criar uma nova profissão, mas de ressignificar o mundo (e, com ele, todas as profissões). Tampouco vejo permacultura como religião: a ética não é dogma; Bill Mollison não é deus; e os princípios não são mandamentos. Não estou nessa para venerar pessoas, nem pra ser venerado, apesar de reconhecer e agradecer pelos trabalhos que diversas pessoas realizaram e realizam.

Mais do que me preocupar com o emprego dos permacultores e suas biografias, minha preocupação é com a emancipação da sociedade, que pode se beneficiar de uma ferramenta de incremento da autonomia como a permacultura. Acho justo que lhes seja dado um reconhecimento material e imaterial por toda a dedicação prestada, mas quando esses interesses pessoais de categoria se sobrepõe aos benefícios coletivos, eu não tenho a menor dúvida de como me posicionar.

Não pratico permacultura por direitos autorais, por propriedade intelectual, nem por patentes. Vejo permacultura como copyleft (apesar de Mollison haver patenteado o termo). Estou nessa por emancipação pessoal e coletiva.

Dessa forma, e com todo o respeito, entendo que existam críticas a este posicionamento; e também entendo que nem todos precisamos concordar. Acredito que o debate público – e fraterno – é benéfico para a sociedade como um todo, pois pode se valer da inteligência e das sensibilidades coletivas, sempre mais completas que as individuais. Ainda assim, meu sonho é a unidade intergeracional. Sou fruto de um processo histórico que não começou e não acaba em mim; por isso sou grato a todxs que me precederam e todxs que me sucederão. Estamos eternamente conectados.

O interesse e as iniciativas de permacultura se multiplicam pelo Brasil: como impulsioná-las mantendo profundidade e qualidade sem impor uma hierarquia desmotivante? Como desfazer essa impressão já consolidada de que a permacultura é elitizada, e de que os valores cobrados por boa parte dos cursos é inacessível?

O mesmo respeito que dou, espero receber. E assim como aceito de coração aberto às críticas que me foram endereçadas, gostaria que a comunidade permacultural brasileira – na qual me incluo – não perdesse de vista o importante quarto princípio da permacultura: pratique auto-regulação e aceite feedback.

A história avança; novas percepções emergem; movimentos se multiplicam. É preciso refletir, agir, e mudar. Sempre.

Que venham as mudanças! Somos muitxs!

Porto Alegre, abril de 2016